sábado, 3 de março de 2012

O desafio da educação financeira


Como ensinar a um aluno cuja mãe tem 70 pares de sapatos ou a outro estudante cujo pai carrega dois celulares a importância de poupar? Esse é o contexto com o qual muitas escolas privadas precisam lidar nas aulas de educação financeira, inclusive as instituições ouvidas nesta reportagem. O modelo familiar nem sempre contribui para uma conscientização sobre o bom uso do dinheiro. Além disso, muitos jovens não querem se espelhar nas experiências dos seus familiares nesse campo. As enquetes que o professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jurandir Macedo, realiza todos os semestres com os novos ingressantes na disciplina revelam que menos de 20% dos alunos têm seus pais como exemplo de gestão financeira que gostariam de seguir. A escola pode, então, servir, segundo os especialistas, como um espaço de grande importância na formação de outro modelo de educação financeira, com base no ensino de valores, discussões sobre projeto de vida e uso inteligente do dinheiro.

A realidade econômica do Brasil sofreu transformações significativas nas últimas décadas. No período de hiperinflação, as pessoas estavam mais preocupadas em apenas sobreviver. Com a maior estabilização da moeda, ampliaram-se as oportunidades de consumo e crédito, o que deixou a vida de muitas crianças e adolescentes bastante confortável. Entretanto, esse cenário gerou alguns efeitos colaterais, como o excesso de endividamento das famílias. “As novas gerações se criaram com toda facilidade de hoje, mas podem ter dificuldades no futuro”, afirma Jurandir Macedo, que também é doutor em Finanças Comportamentais e consultor do Itaú Unibanco, sobre os problemas que alguns jovens podem herdar de pais que deram tudo aos filhos, mas não souberam cuidar das próprias contas.

Tornar essas novas gerações conscientes (às vezes até mais do que seus familiares) da necessidade de poupar e menos consumistas, apesar das altas mesadas que alguns ganham, faz parte dos principais desafios de muitas escolas particulares. “A grande preocupação da escola é o uso consciente do dinheiro, o guardar com qualidade, o minimizar o consumo desenfreado dos adolescentes, pois as famílias hoje compram o que os filhos querem e não apenas o que é necessário, por conta da geração consumista que temos”, explica Esther Cristina Pereira, diretora da Escola Atuação, em Curitiba (PR), onde existe há oito anos um projeto interdisciplinar de educação financeira. Para alcançar esses objetivos, a instituição de ensino paranaense desenvolve várias ações, em sala de aula e fora da escola, com alunos do maternal ao 9º ano do ensino fundamental. No intuito de ajudar os menores a compreender que não é possível comprar tudo o que se deseja, a Escola Atuação leva os alunos do Jardim I para uma loja de brinquedos para o “dia de olhar”. A proposta é fazer com que as crianças aprendam a apenas apreciar e compreendam que há momentos especiais para comprar. Segundo Esther, muitos estudantes, por causa da mesada, já sabem como lidar com a presença do dinheiro, porém, por essa mesma razão, têm dificuldade de lhe dar o devido valor. “O trabalho de conscientização é árduo”, acrescenta. Para apresentar uma realidade diferente aos jovens, é realizado o projeto da família carente, que é “adotada” por eles durante o ano. “Ajuda muito, pois eles percebem a pobreza, a dificuldade de ter e o valor do ser. Isso contribui imensamente com o projeto de educação financeira porque viver a pobreza gera em nós um sentimento de que não precisamos de tudo de marca sofisticada para sermos felizes”, pontua a diretora.

O viés social também é um dos caminhos utilizados na disciplina de Empreendedorismo e Educação Financeira do Colégio Sagrado Coração de Maria, de Brasília (DF), para ensinar valores aos alunos. Segundo a pedagoga e professora Rosa Cristina Leite, a matéria se apoia em três fundamentos: saber gastar, poupar e doar. Um dos projetos desenvolvidos esse ano é o “Cofrinho Solidário”, que tem como finalidade usar a arrecadação dos estudantes para atender pedidos das cartinhas de crianças carentes endereçadas ao “Papai Noel” recebidas pelos Correios. Além da consciência social, também são trabalhados temas relacionados aos sonhos individuais, projetos de vida e desenvolvimento humano, levando em consideração as necessidades atuais do mercado profissional, em aulas semanais de 50 minutos, que fazem parte do currículo regular para todas as séries do ensino fundamental. A instituição de ensino também busca a participação dos pais, por meio de palestras com economistas e outros especialistas. Apesar disso, a docente conta que é comum os alunos levarem exemplos vindos de dentro das próprias famílias que contradizem os conceitos ensinados em sala de aula. Mas Rosa, que é apaixonada por sua disciplina, não desanima e procura sempre nesses momentos discutir com a classe a situação apresentada. “É um trabalho de dia a dia. O aluno não aprende de um dia para o outro. É uma sementinha que a gente vai plantando. Algumas vão dar frutos lindos e outras, infelizmente, não vão, mas a gente tem que acreditar”, resume.

Formação

Para Jurandir Macedo, antes de iniciar qualquer programa de educação financeira, a escola deve se preocupar com a formação dos professores. “É preciso ter cautela com cursos rápidos e soluções milagrosas, educação leva tempo”, alerta. O especialista sugere que as instituições de ensino comecem com um trabalho de reflexão entre os educadores, oferecendo também educação financeira para os docentes, promovendo discussões de valores e, sobretudo, aprofundando questões éticas dentro da escola. “Cuidado com a educação financeira de baixa qualidade que se prolifera no País”, reforça. Para ilustrar, Macedo diz que cortar o supérfluo como muitos manuais apregoam, por exemplo, não é ensinar educação financeira, já que isso também está associado ao prazer da vida. O objetivo deve ser, em uma abordagem mais ampla, buscar o equilíbrio, reduzir o desperdício, o consumo exagerado, tornar a escola um espaço de igualdade, mas sem incentivar o aluno a virar um “miserável”.

O especialista Álvaro Modernell, um dos consultores do Ministério da Educação (MEC) na elaboração do projeto piloto da Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef) nas escolas públicas, autor de diversos livros e cartilhas sobre o tema, acredita que uma boa forma de introduzir o conteúdo nas instituições de ensino é começando por projetos de leitura. “A escola pode adotar dois ou três livros relacionados à educação financeira por ano”, recomenda. Modernell defende que essa é uma maneira eficiente de despertar o interesse tanto dos alunos quanto dos professores, permitindo a identificação dos docentes que têm maior afinidade com os temas para que sejam formados nessa área antes da implementação da educação financeira, seja no modelo de uma disciplina específica ou como um programa transversal. O especialista também destaca que o aprendizado impacta as famílias, algumas vezes reduzindo até a inadimplência nas mensalidades por causa da preocupação dos filhos com essa questão, que acaba motivando os pais a priorizar o pagamento. Da mesma forma que as novas gerações são mais conscienciosas do que as anteriores com relação à preservação ambiental, Modernell aposta que acontecerá igual com a educação financeira se as escolas investirem nesse conhecimento. E para o professor da UFSC, Jurandir Macedo, um bom modo de levar conteúdo de qualidade para a escola é por meio de parcerias com órgãos do setor. “Grande parte do conhecimento em educação financeira está dentro do sistema financeiro. Um bom caminho para as escolas é buscar proximidade com organismos como a Comissão de Valores Mobiliários, a Bolsa de Valores e os bancos interessados”, propõe.


FONTE: Revista Gestão Educacional.

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